quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Sobre a pressão imigratória



por João Marinho
Gente, eu, como muitos, fiquei bastante consternado com a morte das crianças sírias tentando atravessar a Turquia, mas, ao mesmo tempo, preocupado com o tom antieuropeu que a discussão tem tomado, principalmente por parte de esquerdistas.

De um lado, devo dizer que eu consigo entender o receio dos europeus. No Brasil, nossa comunidade muçulmana é pacífica. Entre outros motivos, por ser muito pequena.

Em países europeus, no entanto, nem sempre a convivência é tão ideal. Na Inglaterra, há bairros inteiros onde se procura implantar a Sharia, em vez de seguirem as leis do Estado. Na Holanda, gangues de jovens islâmicos agridem gays e lésbicas na rua por seu "pecado": há alguns anos, o país precisou instaurar um regime em que solicitava ao imigrante muçulmano uma declaração de que aceitava as leis liberais holandesas, não sem ouvir acusações de ser "xenófobo".

Quantos jovens europeus, nos últimos meses, têm sido seduzidos e aliciados por pregadores muçulmanos radicais, indo engrossar as fileiras do Estado Islâmico? Consigo entender por que existe receio da imigração em massa, sem retirar seu caráter de tragédia humana dos muçulmanos que buscam tão-somente fugir das guerras e viver em paz.

Também fiquei com uma pergunta incômoda: será que alguém já tentou trazer algum refugiado sírio para o Brasil? Bom, eu tentei. Mohamad era o nome dele: muçulmano, gay, sírio, vivendo em um campo em Tiro, no Líbano, era refugiado três vezes.

Fiquei espantado em como é extraordinariamente difícil conseguir um visto brasileiro. Se o turista é sírio, nosso país exige que ele tenha comprovação de emprego e renda para bancar a viagem, passagens compradas de ida e volta, reserva de hotel, entre "otras cositas más". Não tem hotel? Precisa de carta de um brasileiro nato dizendo que vai hospedá-lo em sua casa.

Sim, Mohamad não era turista, mas refugiado – e aí está a pegadinha. É que o visto brasileiro de refugiado é um visto de turista modificado, retirando apenas algumas exigências que, de outra forma, são insustentavelmente absurdas, como a de trabalho e renda (oi?). No fim das contas, ele não conseguiu.

Sem saber dessa realidade, quantos de nós criticamos a Hungria por ter "segurado" imigrantes e depois liberado aos poucos, SEM VISTO, para passarem por seu território rumo à Alemanha? O Brasil está entre os países que MENOS receberam refugiados de guerra. Perdemos até para outros países americanos. Não é à toa que tantos haitianos entram aqui pela via ilegal.

Aliás, por falar em haitianos... Alguém realmente tem se preocupado com eles, afora as pastorais católicas? Com um visto difícil de conseguir, o governo federal esquerdista apenas muito depois resolveu relaxar as regras – mas continua sem policiar corretamente as fronteiras e só agiu com essa medida "muito eficiente" do visto depois que a situação dos ilegais no abrigo de Brasileia, hoje fechado, ficou à beira do insustentável e nas costas do governo acreano.

Aí, o que o governo do Acre fez? Para se livrar do "problema", alugou uns ônibus praticamente na calada da noite, encheu de haitianos e mandou tudo para São Paulo, onde lotaram a Baixada do Glicério, na capital, para serem assistidos pelas pastorais, que parecem as únicas realmente preocupadas. O governo paulista reclamou, e aí quem era "xenófobo" era o governo paulista. Oi? Posso não gostar do tucanato de Alckmin, mas, neste caso, qualquer um vê que ele tem mais razão do que menos razão.

Enquanto isso, pouco se faz para saber a profundidade do drama desses refugiados, que são refugiados de uma catástrofe natural. Quantos morreram na travessia pelo Mar do Caribe? Quantos foram abandonados por não terem mais dinheiro para pagar os coiotes? Quantos adquiriram malária e outras enfermidades na travessia pelo Peru, pela região amazônica, ou nos então depósitos de gado humano no Acre? Alguém contou?

Isso tudo acontece debaixo de nossos narizes brasileiros, e a população c*ga e anda. Então, aparece a imagem de duas crianças tragicamente mortas em uma travessia pela Turquia, e a Europa é o "Mal".

Falar dos outros é fácil.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Trans crucificada na Parada Gay




A trans crucificada na Parada, ou a blasfêmia que não existe

por João Marinho

É duro ser óbvio.


Mas uma performance artística como a da Viviany utilizou um forte simbolismo que não é cristão, é universal: a crucificação, de Cristo, como forma de martírio dos excluídos.

Esse simbolismo aparece ao longo de toda a história ocidental nas artes, na filosofia e em numerosas outras instâncias – e nunca foi monopólio das igrejas. Aparece até em países não ocidentais e não cristãos.

É tão correto e universal utilizar esse simbolismo quanto utilizar os simbolismos trazidos pela mitologia grega, por exemplo – que, igualmente, estão presentes nas artes, na filosofia, na psicologia e, vejam só, até nas produções de pensadores cristãos!

Será que Freud precisou ser um grego converso e consultar o Oráculo de Delfos para fazer referência a Eros e Psique e até nomear alguns elementos da psicanálise assim?

Será que, quando você chama uma pessoa de "Judas", não está fazendo uma referência ao simbolismo da traição, mas dizendo categoricamente que está prestes a ser morto numa cruz porque aquela pessoa acabou de vender você por algumas moedas de prata (boa sorte em encontrar a pena de cruz em pleno século 21, aliás)?

O que é cristão é tão-somente a crença no sacrifício de Cristo como redentor dos pecados e a natureza divina de Cristo. Assim mesmo, nem esta última é considerada correta por todos: as testemunhas de Jeová, por exemplo, acreditam na redenção dos pecados por meio do sacrifício, mas rejeitam a divindade de Cristo.

Com esta parte religiosa, a Viviany não mexeu em nada. Por caso, ela se posicionou como uma nova Salvadora da humanidade?

Ela pregou um novo Evangelho? Recrutou doze novas apóstolas (dica: não é autodeclarado "apóstolo", por acaso, o organizador da "Marcha para Jesus"? A se pensar...)?

Por acaso, ela disse que estava, na Parada, crucificada para salvar o mundo do pecado? Por acaso, ao menos, ela disse que o sacrifício de Cristo nada valia e que o dela é que deveria ser considerado em seu lugar?

Não.

E ela só poderia ser considerada blasfema, pelos dogmas cristãos, se tivesse dito qualquer dessas coisas – e abram parênteses, porque ser blasfema é direito de liberdade de expressão também.

Viviany, no entanto, não mexeu com nenhum desses dogmas. Fez uma representação artística, buscando inspiração no simbolismo universal da morte de Cristo como martírio dos excluídos da mesma forma que MILHARES de pensadores, artistas, filósofos e religiosos, até de outras religiões, já fizeram antes – e utilizou esse forte símbolo para fazer uma denúncia social contra a intolerância religiosa que vitima LGBTs todos os dias.

Ora, não precisa "ser mais cristão" que ninguém para fazer uso desse simbolismo. Não precisa ser "mais cristão que todos os outros" para entender esse simbolismo que, como acabei de mencionar, foi utilizado até por sábios de outros credos.

O espanto, isso sim, é que os próprios cristãos não entendam o uso do símbolo e tratem como "blasfêmia" aquilo que nem mesmo sua doutrina autoriza a tratar como.

E se vamos falar de imposição, sinceramente, quem precisa rever conceitos são os cristãos.

Defendemos aqui uma representação simbólica da morte de Cristo e a denúncia social que ela traz. Não estamos rejeitando o direito de os cristãos exercitarem sua fé por causa dessa defesa.

Já você, caro cristão fundamentalista, critica a manifestação da transexual, dizendo que "foi desrespeitosa", "agressiva", porque a crucificação é "santa e superior".

Ora, eu não acredito que o simbolismo da crucificação é "santo e superior" – e, no entanto, defendo o direito de utilizá-lo tanto quem acredita que é quanto quem não acredita que é.

você defende que quem não acredita na mesma "santidade" que você se abstenha de fazê-lo, apenas porque você e sua comunidade acreditam nela.

Quem é que está impondo seu credo a outros mesmo?

E se quiserem prova do que digo, leiam o que diz a própria Viviany Beleboni: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/06/tudo-bem-encenar-a-paixao-de-cristo-mas-quando-e-uma-travesti-nao-pode-nao-e/

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Quanto aos gays que fazem coro a Feliciano e afins, só tenho a dizer uma coisa: lamentável!

Vira e mexe, aparecem com aquele discurso de que a "Parada perdeu o propósito", de que "é só festa e deveria ser política", que deveria "reivindicar em fez de tocar música e haver pessoas fazendo sexo".

Aí, quando alguém faz uma denúncia política e social por meio da arte e de um símbolo forte e universal, reclamam porque "foi desrespeitoso" e "há outros meios de exigir respeito"?

Querem um dica? Vão, então, à Parada LGBT do próximo ano e proponham esses "outros meios". Garanto que nós outros, e a Viviany, muito nos aproveitaríamos de suas iluminadas sugestões.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Homofóbico não é gay enrustido




por João Marinho

Leio esta notícia e, para meu (não tão grande) espanto, vejo muita gente, inclusive gays e inclusive simpatizantes, regurgitando aquele discurso de "tá vendo? Todo homofóbico, no fundo, é gay enrustido".

Será?

Esse discurso de que "se é homofóbico é porque é gay e não se aceita" é bem perigoso, porque joga nas costas dos gays não apenas o fato de serem vítimas da homofobia, mas também de serem seus agentes.

Quer dizer, então, que se você é gay e é agredido por um jovem com uma lâmpada na avenida, é porque aquele jovem é gay também (e não se aceita)?

Quer dizer que se você beija seu namorado e é severamente agredido por quinze  membros de uma torcida organizada no metrô, esses 15 são gays também (e não se aceitam)?

Quer dizer que se você é um adolescente e morre pisoteado por outros adolescentes que praticam bullying porque você tem pais adotivos gays, é porque esses adolescentes agressores são gays também (e não se aceitam)?

Quer dizer que se você é um pai e beija seu filho para, em seguida, ter a orelha decepada por serem ambos confundidos com um casal gay, é porque os que a deceparam eram gays também (e não se aceitavam)?

Quer dizer que quando um pai e uma mãe evangélicos expulsam o filho gay de casa é porque esse pai e essa mãe são gays (e não se aceitam)?

Menos, por favor. Isso está incorreto.

A nossa sociedade, inteira, é que é homofóbica. A família, a escola, a religião, o Estado, as convenções sociais, os papéis de gênero, até as leis... Tudo é tradicionalmente construído de forma a se voltar contra a homossexualidade ou dizer que ela é indesejável.

Ora, é fácil ser homofóbico: basta seguir a maré. Difícil é não ser homofóbico, porque exige pensamento crítico, exige respeitar o outro em sua alteridade, questionar e repensar tudo que é ensinado desde a infância – e o curioso é que isso, essa dificuldade, pode ser assim mesmo para um gay.

Em suma, homofobia não tem nada a ver com enrustimento, com "não se aceitar". Poucas pessoas "nascem fora do armário" – e, se houvesse essa relação, então, praticamente todo gay, por convenção, seria homofóbico, porque esteve no armário algum dia e fatalmente passou por problemas de autoaceitação, pelos motivos que acabei de elencar.

Não, meus caros.

Homofobia tem a ver com cultura, porque esta é que aponta que a homossexualidade é indesejável – e, assim sendo, existem tanto homofóbicos gays quanto homofóbicos héteros. No entanto, sendo os héteros a maioria da sociedade, são também a maioria dos homofóbicos... Ou vamos defender e acreditar que "por estarem bem-resolvidos com o fato de gostarem do sexo oposto", só por isso, não têm preconceito algum e são todos anjinhos de candura?

Ao contrário do que diz esse discurso, a ciência não esposa isso, não. A psicanálise não esposa isso, não. Quem esposa essa ideia é o senso comum – e de forma bem acrítica, aliás.

Portanto, cuidado... Porque, na ânsia de apontar o dedo para o homofóbico proferindo esse discurso, você está, na verdade, retroalimentando a própria homofobia... Ou vai dizer que já ouviu ser comum casos de assassinos de gays que se uniram em matrimônio?

Isso sem falar do gosto amargo de, como todo homofóbico, apontar, nesse processo, a homossexualidade como um defeito, como uma anátema no outro. Ela nunca é. Mesmo que, infelizmente, seja parte da psique de dois assassinos.