A Bíblia é homofóbica?
Mesmo com a teologia inclusiva e supostas passagens
pró-homossexualidade,
não devemos maquiar a homofobia e demais preconceitos
de certos textos bíblicos.
por
João Marinho
A revista Superinteressante
mais recente traz, em sua capa, a manchete para um texto que nos apresenta a “Bíblia
como nunca lemos” – e que traz à tona parte daquilo que os cristãos adoram
empurrar para baixo do tapete: Deus mandando matar, relacionamentos sexuais incestuosos,
estupros, guerras sangrentas, etc.
Uma parte faz referência à homossexualidade e mesmo à
abordagem de que havia relacionamentos homossexuais no texto sagrado que não
sofreram condenação, mas louvor. Refiro-me aqui a Davi e Jônatas.
Sei
que o tema não é consensual, mas, mesmo levando em conta o aspecto cultural e
histórico, é impossível não observar que havia algo de especial entre esses
dois personagens meio míticos, meio históricos (se não, totalmente míticos).
No
entanto, será que, pelo fato de a Bíblia (supostamente) falar favoravelmente a
certos aspectos da homossexualidade, isso é suficiente?
Houve
um debate numa lista de discussão de militância LGBT da qual participo, e eu
tomo a liberdade de divulgar, em forma de artigo, um comentário que fiz a um
dos participantes sobre o porquê de minha resposta a essa pergunta ser não – e por que, a despeito da teologia inclusiva, permaneço longe da
Bíblia e do retrato da divindade que ela apresenta, ainda que seja o retrato da
T.I., que admite a homossexualidade a cristãos.
Questão
de escolha
Na verdade, a questão do
embate entre as diferentes formas de teologia inclusiva e as vertentes mais
conservadoras, para mim, é mais profunda do que escolher um lado ou outro.
Mesmo que fosse, o que não é, consensual de que haveria um relacionamento gay entre Davi e Jônatas e que o autor, ou os autores da história, isso admirasse(m), é fato também de que, não à toa, ele, ou eles, teve (tiveram) de maquiá-la. Não fosse assim, haveria pouco ou nenhum espaço para o contraditório a respeito da relação entre os personagens.
Agora, porém, assumamos que realmente tenha havido um relacionamento gay entre Davi e Jônatas, que a história contada seja essa – uma homofilia bíblica, em vez de seu oposto, a homofobia. Isso descartaria a existência da mesma homofobia na Bíblia?
Minha resposta: evidentemente que não. Essa homofobia está lá, clara, exuberante e palpável na “Palavra”.
Não é porque os livros de Samuel, Reis e Crônicas exaltam o relacionamento entre Davi e Jônatas e ambos trocaram declarações carinhosas que o Levítico e suas injunções a certas práticas homoeróticas deixam de existir.
Não é porque Rute fez a Noemi uma declaração maravilhosa de amor, que é ouvida em certos casamentos sem que muitos saibam que foi de uma mulher a outra, que Josafá deixou de expulsar os homens efeminados da terra, se optarmos pela tradução de Almeida.
Não é porque o centurião (supostamente) tinha um caso com seu servo e Jesus nada condenou, curando o segundo, que Paulo deixou de se levantar contra, pelo menos, certas categorias de relacionamentos homossexuais.
As nem tão novas interpretações teológicas inclusivas, cujas bases remetem a antes dos anos 1950, trouxeram de bom o fato de que a Bíblia não é, ou talvez não seja, toda homofóbica classicamente falando, como os cristãos conservadores tanto gostam de retratá-la. No entanto, o exato oposto da posição desses conservadores, que é dizer que a Bíblia não é nada homofóbica, também é uma ilusão.
Mesmo as interpretações histórico-críticas mais avançadas nesse sentido concordam que, no mínimo, certas categorias de relações homoeróticas eram proibidas e/ou malvistas, notadamente as que se remetiam a contextos de prostituição e/ou paganismo, como no Levítico – e que, embora não fossem um mal em si mesmas, eram consideradas inadequadas (toevah).
Para os homossexuais, sobretudo os cristãos, claro que isso ameniza o problema – mas, para mim, não o resolve, à medida que permanece a condenação a certas práticas e a intolerância religiosa aos credos pagãos, muitos dos quais permanecem vivos ou se criaram posteriormente.
Dito de outra forma, do ponto de vista de uma alma libertária como a minha, há uma melhora, mas não uma cura – e isso é simplesmente insuficiente.
Eu jamais acharia que a Bíblia se tornou fantástica por exaltar os casamentos homossexuais estáveis, mas condenar ao inferno os garotos de programa, muitos dos quais são homossexuais como eu, apenas por serem prostitutos – ainda que não fossem homossexuais, como demonstram estudos que apontam erros de tradução e dizem que tais passagens se referem às prostitutas e prostitutos heterossexuais, porque, no fim, dá no mesmo: alguém vai para o inferno.
Jamais acharia que a Bíblia se tornou fantástica porque não apresenta Jesus condenando um centurião romano e seu moçoilo num relacionamento em moldes próximos ao da Grécia antiga, mas considera “toevah” um relacionamento gay dentro da Israel antiga.
No fim, isso é dizer, como sempre disse o cristianismo mais ferrenho, que uns são melhores que os outros, mesmo entre homossexuais. É “melhor” ser gay casado e “sério” do que garoto de programa ou prostituta, independentemente de ser ele ou ela hétero ou gay, sagrado (a) ou não. Também é “melhor” ser adepto da hebefilia do que um sacerdote de outra religião.
É mesmo essa a libertação que queremos? A liberdade de escolher entre “salvos” e “não salvos”, entre “melhores” e “piores”, entre “abençoados” e “condenados”? Levar para o céu os gays casados e condenar ao inferno os (as) prostitutos (as), quer seja tão-somente por venderem o corpo, quer seja por servirem a outros credos?
São essas reflexões que me mantêm afastado de todas as igrejas, mesmo as inclusivas, porque, afinal, eu não me contento com uma liberdade pela metade, com um respeito pela metade, com uma aceitação pela metade. Isso não confere com o que acredito ser o papel da divindade.
O que é producente, portanto, é tomar a Bíblia pelo que ela é: um livro histórico-religioso, com um sem-número de contradições, inclusive com relação à homossexualidade, e não a “Palavra de Deus” – e, finalmente, não dar uma de Alice (no País das Maravilhas) e levar em conta apenas uma de suas faces.
A Bíblia que (supostamente) exalta a relação gay do homem segundo o coração de Deus (Davi) e o mais velho Jônatas é a mesma que pode elogiar Josafá pela expulsão dos (as) prostitutos (as) sagrados (as) e que considera, no Levítico, uma coisa algo nojenta o sexo entre dois homens (toevah), embora não um mal em si (zimmah).
Julguem vocês mesmos.
Será que, na vida real,
acharíamos “pior” lidar com um homofóbico que tem uma condenação espiritual
permanente à homossexualidade do que um homofóbico do tipo “não tenho nada
contra, mas tenho nojo”? No que um é
exatamente melhor que o outro, se o nojo ou a condenação espiritual alimentam
ambos a discriminação?
Então, por que vamos considerar a Bíblia diferentemente, apenas porque, no Levítico, ela não chama as relações homoeróticas de zimmah (maléficas, pecadoras), mas as chama de nojentas ou, pelo menos, inadequadas (toevah)?
Pior é dizer que ela, a
Bíblia, não é homofóbica porque,
afinal, ela não tem raiva e não condena a coisa em si (zimmah), “só tem nojo” (toevah)!
Por favor... Isso é adotar para a Bíblia dois pesos e duas medidas que não
empregamos nem para com seres humanos.
A questão de
Deus e o papel sociopolítico dos inclusivos
Evidentemente, a questão de
Deus, Deuses e da fé Neles não tem como ser resolvida facilmente, e, embora os
cristãos mais fervorosos adorem dizer que “não acreditam em religião, acreditam
em Deus”, a verdade é que a noção de divindade e a dimensão religiosa são
indissociáveis em sua origem.
Mesmo que, posteriormente,
uma pessoa opte por não seguir uma determinada religião como fiel, mas mantenha
a fé em uma divindade, essa divindade terá as cores de algum credo ou soma de
credos, seja o originário da pessoa, seja os que ela conheceu posteriormente e
dos quais reuniu certos elementos.
Talvez descontado
parcialmente o esforço de Aristóteles para definir Deus como o algo que
movimenta o mundo, a causa primeira, uma causa não causada, a ideia de Deus é
indissociável da herança religiosa. Na verdade, isso pode ser aplicado até ao
filósofo grego, pois, se ele não houvesse recebido previamente alguma ideia do
conceito do que é um Deus, por que teria dado àquela causa não causada justamente
esse título?
Como pontuou sabiamente Alberto Caeiro, heterônimo do poeta Fernando Pessoa, “mas se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e o luar, então acredito nele, então acredito nele a toda a hora, e a minha vida é toda uma oração e uma missa, e uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. Mas se Deus é as árvores e as flores e os montes e o luar e o sol, para que lhe chamo eu Deus?”.
Para além disso, no
entanto, Deus (ou Deuses), para os que nele(s) creem, são tomados como
realidade. O ateu não entende que o crente vive Deus como uma realidade
palpável e, portanto, não entenderá o conceito de que Ele “não existe”, quando,
para o crente, é existente.
A questão se essa realidade é ou não definitivamente palpável, se existe fora do olhar do sujeito, objetivamente, é mais difícil ainda de ser resolvida e remete a uma solução milenar que a filosofia busca e jamais encontrou. Será que a realidade existe fora do homem, só existe porque existe o homem, ou o que importa é o que o homem vê por meio da objetividade de uma redução eidética, como quer a fenomenologia? Como se vê, a coisa vai bem mais longe, e é a razão por que as discussões sobre a existência de Deus terminam em impasse.
A questão se essa realidade é ou não definitivamente palpável, se existe fora do olhar do sujeito, objetivamente, é mais difícil ainda de ser resolvida e remete a uma solução milenar que a filosofia busca e jamais encontrou. Será que a realidade existe fora do homem, só existe porque existe o homem, ou o que importa é o que o homem vê por meio da objetividade de uma redução eidética, como quer a fenomenologia? Como se vê, a coisa vai bem mais longe, e é a razão por que as discussões sobre a existência de Deus terminam em impasse.
Dito isso, não posso esperar que todos se tornem ateus apenas por serem LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), quando eu mesmo, por sinal, não sou.
Também sei que, para um bom
número de pessoas, a dimensão religiosa reveste-se de extremada importância, de
maneira que, se elas puderem viver sua sexualidade em harmonia com essa
dimensão, tanto melhor – e, aqui, voltamos a falar da teologia inclusiva, que
apoio sob uma perspectiva sociopolítica,
reconhecendo exatamente o papel de benfeitora inegável que possui na vida dos
cristãos que se descobrem LGBTs e que são tão injustamente escorraçados por
outras vertentes.
Em termos de fé, porém, não
adoto a teologia inclusiva: não por considerá-la mentirosa ou equivocada. Pelo
contrário, se formos falar de equívoco, mais equivocados e mentirosos são os
cristãos conservadores que, sob o manto do amor travestido que “ama o pecador,
mas odeia o pecado”, defendem as piores barbaridades, insurgem-se contra outros
humanos seus semelhantes e contra seus direitos e alimentam o preconceito e a
discriminação, como se jamais houvessem ouvido falar da parábola do bom
samaritano que ensina como identificar quem é nosso próximo real.
Minha crítica à teologia
inclusiva e, por extensão, às igrejas inclusivas não se refere ao fato de que
são inclusivas. Refere-se ao fato, simplesmente, de serem igrejas. Todo o cristianismo tem no seu DNA uma questão de escolha
e divisão entre bem e mal, ímpio e justo, salvo e não salvo, abençoado e
amaldiçoado – e sempre se escolhe alguém para estar no segundo grupo, “do outro
lado”, em cima dos mais variados pretextos generalizantes e injustos.
Então, para uma alma libertária, incomoda que seja aceito um tipo de relacionamento homossexual, mas não a prostituição, por exemplo. Em relação ao cristianismo conservador, é certamente uma evolução, por se ter aumentado o escopo da inclusão, mas certos grupos permanecem inequivocamente excluídos de gozar das benesses celestiais e sob pretextos que pouco resistem a uma análise crítica, sincera e realista do mundo.
Aliás, sendo inclusivo ou
não, é preciso ser sincero e realista. É positivo que a T.I. demonstre que a
Bíblia não é de todo homofóbica e que é possível, pelas próprias ferramentas de
que dispõe essa vertente, harmonizar religião e sexualidade homos/bissexual.
No entanto, é preciso ter cuidado para não cair no extremo oposto e contar uma mentira, pois simplesmente não é verdade que a Bíblia não seja nada homofóbica, como já pontuei. Mesmo que admitamos que a Bíblia não condena a homossexualidade em si, não há dúvida de que algumas categorias de interação homoerótica permanecem, no entanto, condenadas.
Curiosamente, a situação é a mesma para os heterossexuais, porque também nem todas as formas de interação heteroeróticas são admitidas. Por um lado, tem-se, portanto, o aspecto positivo de a teologia inclusiva igualar todas as realidades do espectro sexual. No entanto, de outro, isso demonstra a necessidade de ir mais a fundo no problema – e, fatalmente, nessa viagem, o resultado pode ser simplesmente o abandono da fé bíblica.
Respeito, portanto, os cristãos inclusivos que conseguiram harmonizar fé e sexualidade com base nas interpretações mais recentes e consolidadas da T.I. Respeito mais ainda os teólogos que não reconhecem na Bíblia a “Palavra de Deus”, mas um registro religioso com cores históricas das evoluções da fé de um povo específico. Até mesmo gosto das histórias de Davi e Jônatas e Rute e Noemi.
No entanto, me mantenho alegremente afastado dela, a Bíblia, porque não acho que é suficiente para minha felicidade uma coisa ou uma pessoa ser “mais ou menos homofóbica” e ser “mais ou menos homofílica”, aceitar “mais ou menos”, respeitar “mais ou menos”.
Não é, afinal, a própria Bíblia que diz, no Apocalipse, que, por ser morna, a Igreja de Laodiceia seria “vomitada” (“Oxalá fosses frio ou quente”)? No que tange à Bíblia, prefiro ser, então, um iceberg...