terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sexo e culpa


Regina Navarro Lins: o sentimento de vergonha sexual faz com que quase todos se recriminem por suas atividades


Um dia recebi no consultório o telefonema aflito de uma mulher querendo marcar hora urgente. Ethel, de 74 anos, magrinha, de cabeça toda branca, chegou agitada. E foi logo contando sua história: “Moro com minha irmã, dois anos mais velha. Nunca nos casamos, somos virgens. Até pouco tempo atrás eu nunca tinha me preocupado com sexo. Mas de dois anos pra cá a minha vida virou um tormento. De manhã quando acordo, se não me masturbar, não consigo fazer nada, nem dizer para a empregada o que é preciso comprar pro almoço. E o meu desejo sexual vem aumentando cada vez mais. Agora descobri que com o chuveirinho do bidê posso ter mais prazer do que com a minha mão. Mas estou preocupada, tenho pavor de que a minha irmã descubra que faço isso.”
Os sentimentos de vergonha e culpa sexuais, tão presentes na nossa cultura, fazem com que quase todos se recriminem por suas atividades ou mesmo por seus desejos, como se não fossem algo humano. No mundo ocidental, o corpo é impuro de nascença, visto como inimigo do espírito. Aprendemos a nos sentir envergonhados e culpados por ele, principalmente pelos órgãos sexuais e suas funções. Há muito tempo nos ensinam que imagens do corpo humano nu, particularmente experimentando o prazer sexual, são obscenas. E mesmo quando se consegue rejeitar conscientemente todo esse moralismo, a mensagem negativa é absorvida sem que se perceba. E o sexo sendo visto como algo tão perigoso leva a maioria a renunciar à própria sexualidade, ficando quieta no seu canto. A questão é que nem sempre a repressão é bem sucedida, como no caso de Ethel.
As antigas civilizações tinham atitudes bem diferentes diante da nudez e do sexo. Desconheciam o conceito de obscenidade, e as imagens dos órgãos sexuais masculinos e femininos eram encaradas com naturalidade. Muitos santuários espalhados pelo mundo mostram representações de vulvas e falos. Até o momento em que o culto ao falo se impôs, há cinco mil anos, havia liberdade sexual e as deusas reinavam absolutas.
Entretanto, a partir daí, os princípios masculino e feminino se separaram. Na arte, na religião e na vida. O princípio fálico, ideologia da supremacia do homem, condicionou o modo de viver da humanidade e a sexualidade começou a tomar outro rumo. Obcecados pela certeza da paternidade, os homens reprimiram de todas as formas a sexualidade feminina. Mais tarde, na Idade Média, o corpo humano foi condenado por conta do pecado original, e a anti-sexualidade se tornou um refrão obsessivo. Até o Iluminismo (século XVIII), a condenação da sexualidade só iria crescer.
Por mais incrível que pareça, o hábito do banho também foi atacado, considerando-se que qualquer coisa que tornasse o corpo mais atraente era incentivo ao pecado. Havia quem acreditasse que a pureza do corpo e das vestes significava a impureza da alma. Os piolhos eram chamados de pérolas de Deus, e estar sempre coberto por eles era marca indispensável de santidade. Os exemplos da falta de higiene como pré-requisito para a salvação da alma são muitos: um eremita religioso viveu cinquenta anos depois de ter se convertido e durante todo esse tempo recusou-se terminantemente a lavar o rosto e os pés. Uma freira ficou doente em consequência dos seus hábitos. Estava com sessenta anos e, por princípio religioso, recusou-se durante grande parte da sua vida a lavar qualquer parte do seu corpo, com exceção dos dedos.
Na tradição judaico-cristã a relação sexual se justifica apenas para a procriação e só é apropriada dentro do casamento. Mas mesmo nele as proibições são muitas. Masturbação, sexo oral, sexo anal, sexo vaginal usando qualquer tipo de anticoncepcional, são pecaminosos por serem considerados antinaturais. Isso sem falar no tormento provocado por outras situações também comuns, como o desejo sexual por outras pessoas que não os próprios cônjuges e por pessoas do mesmo sexo. A impressão é a de que temos um gatilho de culpa pronto para disparar e nos atingir à menor provocação. É claro que a consequência dessa visão tão distorcida do corpo humano é dramática: o grande número de pessoas frustradas e insatisfeitas
O historiador e crítico social Morris Berman, num estudo intitulado Coming to our senses (Voltando à razão), argumenta que os ocidentais perderam o próprio corpo. Em grande parte estamos fora de contato com a verdadeira realidade somática. Pelo fato de estarmos “fora do corpo”, procuramos nos firmar recorrendo a substitutos — satisfações secundárias — como sucesso, fama, auto-imagem e dinheiro. Esses substitutos não proporcionam uma satisfação completa e, mesmo não levando em conta nossa realidade somática, temos uma preocupação paradoxal com o corpo e sua aparência. Procuramos melhorá-lo com maquiagem, roupas bonitas, cirurgia plástica, tratamentos estéticos, vitaminas.
Diante de tudo isso é impossível não formular uma pergunta: será que a nossa obsessão por sexo não se origina justamente da ausência da verdadeira sexualidade?

Fonte IG

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