sexta-feira, 20 de maio de 2011

O desafio da Igreja Inclusiva e do Ministério Pastoral junto à população LGBT


Castelo de Wittenberg, onde Lutero fixou as 95 teses


Rev. Márcio Retamero*

“Por que acho que é uma vergonha para os evangélicos que haja uma igreja gay? Simples. Esta igreja só surgiu para preencher uma lacuna deixada pela igreja evangélica. Se os gays fossem acolhidos em nossas comunidades, a fim de que fossem expostos à Palavra de Deus, eles não teriam qualquer razão para buscar uma igreja dedicada exclusivamente a eles.
Não estou dizendo que as igrejas deveriam legitimar sua conduta. Não! Apenas afirmo que devemos ser mais misericordiosos, compassivos, agindo mais ou menos como nosso Mestre agiria.” Bispo Hermes C. Fernandes

Desde que pregou um sermão cujo título é “Sodoma é aqui!”, o bispo Hermes Carvalho Fernandes vem sendo apontado por muitos evangélicos fundamentalistas de herege pra baixo.
No sermão, ao contrário dos que os evangélicos de vertente fundamentalista esperam, o bispo Hermes não pregou sobre “o homossexualismo” (sic) dos habitantes de Sodoma e Gomorra! Usando de imagens fortes da pobreza social brasileira, contrastada com imagens belas de praias paradisíacas às mansões de grã-finos, Hermes falou de Sodoma de uma perspectiva diferente da grande maioria dos pastores evangélicos: inspirado, certamente, na passagem do livro do profeta Ezequiel (Ez 16.49). Tal passagem, geralmente os fundamentalistas passam ao largo dela, explica qual foi o verdadeiro pecado de Sodoma: “... soberba, fartura de pão e próspera tranquilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o necessitado.”

Num determinado momento do sermão, Hermes pergunta à congregação: “qual foi o pecado de Sodoma? Lá tinha orgias e homens beijando homens?” E então cita a passagem acima referida, esclarecendo sua congregação, usando as Escrituras, qual foi o real pecado de Sodoma, o motivo pelo qual esta fora destruída. E conclui: “Sodoma é aqui entre nós!”, e daí passa a criticar severamente a pseudoteologia da prosperidade, pregada por muitos pastores e bispos da vertente fundamentalista da Igreja Evangélica, notadamente Silas Malafaia. Este é criticado pelo bispo, ainda que não tenha citado seu nome, logo no início do sermão, por conta da sua oposição sistemática e estridente contra a aprovação do PLC 122.

Dias atrás, no seu blog, o mesmo bispo escreveu um artigo cujo título é “Porque acho a Igreja Gay uma vergonha para os evangélicos”, texto do qual retirei as passagens logo acima citadas.
No artigo, o bispo Hermes critica a falta de amor e respeito da Igreja para com as pessoas homossexuais; tal comportamento, para ele, é o motivo do imenso afastamento das pessoas LGBT das igrejas evangélicas, e daí, a fundação de “igrejas gays” e o grande crescimento que estas têm obtido junto à população LGBT nos últimos anos no Brasil.

Resolvi escrever este artigo como uma tentativa de resposta ao bispo Hermes.

A primeira coisa que percebo é que Hermes não pode ser enquadrado como fundamentalista evangélico. Sua abordagem bíblica, seu discurso a partir dela, sua forte preocupação com questões ambientais e sociais, demonstram isso. Definitivamente, Hermes não é uma réplica de Silas Malafaia.

A vertente fundamentalista da Igreja Evangélica brasileira é a ala cuja “estrela” mais reluzente tem sido Silas Malafaia. A bandeira “antigay” tem sido a principal questão para tais líderes. A maioria é adepta da pseudoteologia da prosperidade, são os que amam o dinheiro angariado do dízimo (a moda agora é “trízimo” do povo). Jamais Silas Malafaia e seus pares pregariam num texto como o de Sodoma e chamariam a questão para o lado social – o lado das Escrituras – mas usariam tal texto conforme ele é usado há séculos: o pecado de Sodoma foi a sodomia (um tipo de “mãe” do “homossexualismo”).

A abordagem do bispo Hermes é completamente diferente da abordagem fundamentalista. Eu diria que o bispo – muito bem intencionado, pois me parece um homem muito sério – tentou dar uma abordagem histórico-crítica ao texto e, a partir daí, uma interpretação contextualizada da famosa passagem até hoje usada pelos fundamentalistas contra as pessoas LGBT.

Ao questionar a Igreja Evangélica e sua ala fundamentalista a respeito da falta de amor desta para com as pessoas LGBT, o bispo Hermes demonstra real preocupação – no meu entendimento – com a situação atual: o embate e enfrentamento dos fundamentalistas versus a população LGBT. É óbvio que este enfrentamento pertence aos dois lados e não poderia ser diferente, uma vez que o antagonismo entre evangélicos fundamentalistas e pessoas LGBT e suas causas é quase que “natural”. Aliás, faz tempo que não vejo a possibilidade de um consenso entre fundamentalistas e LGBT, nem mesmo sei se esta é a questão, aliás, não é, uma vez que a proposta LGBT é libertária e a proposta fundamentalista é escravizante e teocrática.

Todavia, não posso usar o conceito/adjetivo “inclusivo” para o bispo Hermes, pois no mesmo texto que ele questiona com propriedade a falta de amor da Igreja Evangélica, ele revela que ainda é um evangélico conservador, tradicional, pois aponta para a “conduta”, ou seja, para a prática da sexualidade homoafetiva, como algo ainda pecaminoso. Tal conduta, segundo ele, não deve ser legitimada. Os gays devem ser “expostos à Palavra de Deus” e isso significa que os gays devem ser tolerados em amor nas Igrejas Evangélicas até que reorientem, ou seja, sejam “curados”, (da) sua orientação sexual.

Se eu tivesse a oportunidade de conversar frente a frente com o bispo Hermes, diria a ele algumas coisas e certamente concordaríamos em muito e discordaríamos outro tanto, mas como tal encontro ainda não foi possível, escrevo aqui alguns pontos que eu abordaria neste hipotético bate-papo:

1 – “Igreja Gay” não é sinônimo de Igreja Inclusiva e ambas existem no contexto eclesiástico atual no Brasil. A primeira é aquela cuja maioria é LGBT; é reprodutora da abordagem bíblica fundamentalista e das práticas religiosas dos fundamentalistas e geralmente usa as bandeiras do Movimento Homossexual Brasileiro ou militância LGBT como meio de promoção com vistas ao crescimento numérico. Geralmente a tal “Igreja Gay” adota a pseudoteologia da prosperidade, além da aceitação, pela maioria, das doutrinas neopentecostais em voga nas Igrejas Evangélicas de vertente fundamentalista. Tal qual a Igreja de vertente fundamentalista, a “Igreja Gay” promove a leitura seletiva da Bíblia, relativizando as passagens que supostamente condenam a homossexualidade, mas sustentando a mesma interpretação hegemônica/literalista e acrítica, ou seja, aplicam o método histórico-crítico apenas quando lhes interessa.

2 – Igreja Inclusiva é aquela que adota o método histórico-critico na exegese bíblica e na pregação bíblica, buscando desconstruir absolutamente tudo o que até aqui foi ensinando pelas Igrejas Evangélicas de vertente fundamentalista e tradicional. Embora a maioria da população que adere a esta Igreja seja LGBT, inclusive sua liderança, tal Igreja visa à inclusão real de todas as pessoas – heterossexuais e LGBT – na comunidade de fé cristã e tal inclusão ocorre de maneira radical. A Igreja Inclusiva questiona a heteronormatividade e a desconstrói, buscando “naturalizar” as orientações sexuais da pessoa humana. Tem forte trabalho junto à militância LGBT e nelas militam de fato, não apenas em dias de festa e passeatas, além de adotar os Direitos Humanos como bússola na sua inserção social. A Igreja Inclusiva questiona-se profundamente nas suas práticas, discurso e doutrinas e entende que é uma “Igreja em construção”. Geralmente a Igreja Inclusiva encontra dificuldades no seu crescimento, justamente pela desconstrução teológica e bíblica que promove, exigindo da pessoa que a adere uma disposição real para uma reconstrução do etos religioso. É preciso dizer, também, que a maioria das Igrejas Inclusivas adotam o modelo Histórico de organização eclesiástica, mas jamais sem questionamentos.

3 – Tal distinção é essencial, pois assim como um evangélico tradicional e conservador não pode ser confundido com um evangélico fundamentalista, um cristão gay não deve ser confundido com um cristão inclusivo (que pode ser LGBT ou heterossexual). São duas coisas que tem demonstrado ser diferentes a cada dia que passa.

4 – A Igreja Inclusiva nasceu da necessidade de um local seguro e saudável para a população LGBT cristã. O amor pode superabundar numa Igreja Evangélica Tradicional, mas sempre existe a intenção, aberta ou velada, da reorientação da sexualidade heterodiscordante. A Igreja Inclusiva entende que homossexualidade não é pecado nem doença, mas obra do Criador e que não há nada de errado em ser LGBT, antes, na realização plena das sexualidades da pessoa humana, encontramos a “cura” para a homofobia internalizada, para os traumas vividos na existência, para a superação dos abusos bíblicos dos fundamentalistas, sendo o corolário do ensinamento bíblico que diz que o ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador.

5 – A Igreja Inclusiva é ecumênica e adepta do diálogo inter-religioso, ou seja, ela busca a comunhão com os mais variados tipos de cristianismo (exceto com a vertente fundamentalista do cristianismo, pois tal diálogo ainda não se mostrou possível até o presente momento) e dialoga com as religiões não-cristãs, reconhece a legitimidade dessas e com elas buscam fazer valer a liberdade de consciência e religiosa assegurada pela Constituição Brasileira de 1988. A Igreja inclusiva não “demoniza” as religiões não cristãs e luta ao lado delas contra a demonização, promovida pela Igreja Evangélica, dessas religiões, notadamente as religiões de matriz “afro”. Para além, a Igreja Inclusiva defende o direito inalienável da pessoa humana de não professar uma fé. Proselitismo religioso é uma palavra proibida, além de uma prática proibida, na Igreja Inclusiva.

6 – A Igreja Inclusiva entende que deve ser a “consciência do Estado”, denunciando as mazelas sociais e a arbitrariedade estatal, sempre que este não cumpre seu papel para com os cidadãos e as cidadãs. Além disso, a Igreja Inclusiva é uma defensora e permanente “polícia” da laicidade do Estado. O Estado é laico e não se prostitui com a religião e vice-versa.

7 – A Igreja Inclusiva tem profunda sede de conhecimento científico e não abre mão do estudo acadêmico e da democratização deste conhecimento. Entende que a interdisciplinaridade nos ajuda, enquanto Igreja, não apenas a ler e entender as Escrituras, bem como nossa prática da pregação do Evangelho, vivência deste e inserção social da Igreja no mundo. A Academia é percebida como parceira, jamais uma antagonista. “Fé que pensa, razão que crê” é a palavra de ordem.

8 – O ministério pastoral de uma pastor/pastora da Igreja Inclusiva jamais é usurpador. A “autoridade” de um/uma líder na Igreja Inclusiva é a autoridade do serviço à Igreja e ao mundo/sociedade onde está inserida, jamais está baseada nas fábulas ou nas interpretações forçadas de determinados versículos bíblicos usados fora do contexto para legitimar uma pretensa autoridade “espiritual”. Para a Igreja Inclusiva é cara a doutrina reformada que ensina: “cada crente um/uma sacerdote/sacerdotisa”. Cremos, pregamos e buscamos viver, em verdade, o sacerdócio universal dos crentes. Aquele/aquela que deseja ser líder seja o primeiro, a primeira, que serve.

9 – O pastor ou pastora da Igreja Inclusiva busca intensamente ser voz na sociedade. Seu campo é o mundo e seu povo é o povo que sofre e é oprimido. Seus inimigos são os opressores, que também são alvo de sua mensagem profética para que se convertam ao Deus que é todo Amor. O pastor/pastora inclusivos não são apenas “pastores e pastoras de gays”. Professamos que “não somos livres enquanto uma pessoa permanecer escrava”, ainda que escrava de si mesma.

10 – A Igreja Inclusiva pode ter nascido da falta de amor da Igreja Evangélica, contudo, ela encontrou em mais de quarenta anos de existência (a primeira Igreja Inclusiva do mundo nasceu em 1968, nos EUA) sua razão de ser e entende que sua missão no mundo, seu chamado profético, sua existência não depende da falta de amor da Igreja Evangélica ou da existência do amor na Igreja Evangélica e suas vertentes, principalmente se este amor é amor interesseiro (o que o Apóstolo Paulo afirma em 1ª Coríntios ser um não-amor), um amor que ama condicionalmente. A Igreja Inclusiva rejeita o amor com interesse, seja ele qual for e não considera tal sentimento como cristão. Para nós amar é amar “apesar de”. É Amor incondicional, conforme a Bíblia nos ensina.

Estes são os pontos que eu tocaria caso tivesse oportunidade de conversar frente a frente com o bispo Hermes C. Fernandes. Creio que ele, homem inteligente que é, entenderia que a obra à qual estamos envolvidos passa longe de ser uma obra “alternativa”, “gay”, mas a construção de uma genuína Igreja Cristã, que rejeita com veemência tanto o fundamentalismo religioso, ou melhor, todo e qualquer fundamentalismo, mas, de igual modo, rejeita o amor interesseiro da vertente tradicional e conservadora da Igreja Evangélica.

Nós já estivemos no “Egito”, já atravessamos à pé enxuto o Mar Vermelho, já cantamos o hino da vitória noutra margem, já entramos e tomamos posse da Terra da Promessa e não sentimos saudades das panelas de carne e das algemas que um dia nos prenderam no “Egito”. Hoje, nossa proposta não é a troca de algemas, como acontece na “Igreja Gay”, mas a libertação total do ser humano, pois foi “para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5.1).

*Márcio Retamero, 37 anos, é teólogo e historiador. Mestre em História Moderna (UFF/Niterói, RJ). É pastor da Igreja Presbiteriana da Praia de Botafogo e da Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro (Comunidade Betel). Colunista do site LGBT “A Capa”, também escreve no Gospel LGBT. Tem publicado dois livros: “Pode a Bíblia Incluir?” e “Banquete dos Excluídos”, ambos pela editora Metanoia. É gay, cristão e feliz.

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