quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Mulher, avó e HIV positivo

Aids: cresce participação de pacientes femininas com mais de 50 anos
Fernanda Aranda, iG São Paulo 18/01/2010 07:07


Ela seria avó em nove meses. O tricô e a cadeira de balanço pareciam destino certo. Mas a contagem regressiva nem havia começado e a mulher foi “catapultada” – termo adotado quando conta sua vida – para pensar em sexualidade, camisinha e aids.

Beatriz Pacheco, perto dos 50 anos, recebeu o diagnóstico da doença transmitida pelo sexo sem proteção. Casada, mãe, fiel. Em nada essas características pareciam combinar com o vírus HIV. Em vez da cadeira de balanço, ela foi para o fundo do poço.

A sensação de estar à margem do contágio faz com que mais mulheres como Beatriz dêem rosto para a epidemia de aids brasileira. Em 2000, a faixa etária “de 50 anos ou mais” correspondia a 8% dos novos casos femininos registrados no Brasil. Ano passado, dados parciais divulgados em novembro pelo Programa Nacional de DST/Aids mostraram que a parcela cresceu para 15%. O aumento porcentual foi ano a ano, incentivado por preconceito, falta de informação, a chegada de medicamentos para disfunção erétil – que reacenderam a vida sexual dos homens com mais de 50 – e até negligência médica.

“Nem mesmo os especialistas em saúde cogitam que suas pacientes podem ser infectadas pelo HIV, caso não saibam sobre prevenção”, afirma Maria Filomena Cernicchiaro, especialista do Centro de Referência e Treinamento em Aids (CRT) de São Paulo. Ela trabalha com a terceira idade e elenca tabu e medo de falar sobre um assunto praticamente inexistente durante a adolescência das senhoras como falhas repetidas até mesmo nos consultórios clínicos. “Poucos ginecologistas suspeitam de HIV após certa idade. Quase nenhum conversa com suas pacientes sobre isso”.

O câncer era HIV

Foi o que aconteceu com Beatriz Pacheco. Nenhuma resposta médica explicava seu quadro clínico. Até que o último exame desvendou o então quadro incompreensível. Não era câncer de pele, suspeita principal dos especialistas que visitou. Agora, era preciso dar a informação do resultado encontrado ao marido, amor de sua vida, que estava à espera do seu retorno. O diálogo começou com um telefonema. “Alô Carlos, eu tenho aids”, chorava Bia sem acreditar no que dizia ao marido e sem ter encontrado outra forma melhor de dizer.

Era o terceiro casamento de Bia e a tristeza da viuvez precoce, experimentada duas vezes, já nem era sentida tamanha felicidade no novo matrimônio, completo e sincero. Eram tão felizes, repetiam os que cercavam. Carlos após a ligação inesperada de Bia, no entanto, se transformou. Enfurecido, brigou, berrou e até desmaiou. Durante 30 dias, o casal que era exemplo de felicidade ficou sem trocar olhares, nem mesmo de rabo de olho. Ela se sentia culpada. Ele desconfiado.

Carlos fez todos os exames e o resultado dele para o HIV deu negativo. Bia, tudo indica, foi contaminada pelo vírus no segundo casamento. Aos poucos, o marido foi voltando ao normal. Agora, Bia estava mais tranqüila, mas sabia que era preciso enfrentar outros obstáculos. A sociedade, a moça do supermercado, a caixa do banco, os amigos dos filhos, os parentes distantes.

A reação temida por Bia já foi mapeada por pesquisas e, segundo o último estudo divulgado, se mostra como principal desafio do tratamento do vírus HIV hoje. Com o avanço da medicina, foi possível encontrar medicamentos poderosos para o tratamento da doença. A mortalidade caiu mais de 80% e as mortes colecionadas no início da epidemia, nos anos 80, saíram do cenário atual da aids. O preconceito, no entanto, resiste na cena.

Pesquisa Mundial de Informação à Saúde, encomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) teve o propósito de avaliar como estavam os portadores do vírus HIV 25 anos depois do início da epidemia. No recorte brasileiro do estudo foram entrevistados 1.206 pacientes. Quando as informações eram sobre a qualidade da saúde, 65% dos participantes classificaram como “ótima”, dez pontos a mais do que a média da população do País. Já quando o questionário focou nos impactos sociais trazidos pela infecção, 33% das soropositivas afirmam ter um grau muito intenso de tristeza por causa de preconceito, abandono, solidão e demissão do emprego. E mais: 47% somam a parcela dos que sofrem de depressão. Tudo isso fez o Ministério da Saúde lançar, em dezembro, o slogan “Com aids é possível viver. Com o preconceito, não”. A já então vovó Bia Pacheco, dez anos antes, havia encontrado o antídoto para a discriminação.

Sem vestir a carapuça

Bia e Carlos aos poucos foram voltando às boas. Um beijo aqui, outro ali, um abraço apertado. E a vontade de fazer às pazes “de forma plena” precisava passar pelo desafio de usar a camisinha. Ela não queria infectá-lo e ele queria amá-la. Os dois partiram para supermercados e farmácias. Aos 50 e poucos anos de idade, o “casalzinho 20” tinha a missão de encontrar o preservativo ideal. E como eles se divertiram experimentando!

Foi então que caiu a ficha. Bia Pacheco ativa, feliz, avó tinha o vírus HIV. Se em nada ela tinha de promíscua, drogada, safada porque é que tinha de vestir a carapuça e os estereótipos da aids? Começou a freqüentar grupos e palestras. Em todos, pedia para as mulheres e avós soropositivas levantarem os braços. Encontra muitas parecidas com ela.

As mulheres, casadas, com mais de 60 anos estavam nas estatísticas, conforme atestou pesquisa da Universidade Federal do Ceará, publicada na Revista Brasileira de Epidemiologia. Em análise feita em 107 casos entre 60 e 64 anos, os autores identificaram que o perfil majoritário de infectados era feminino e heterossexual. A mesma constatação foi feita em análise do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. A ideia de que acima dos 60 anos a maioria seria de homossexuais e usuários de drogas injetáveis caiu por terra. Bia sabia de tudo isso. E para vencer o preconceito, decidiu “sair do armário”. A cara da aids não precisava mais ser de astros de rock, extremamente magros. Ela foi para o mundo.

Mulheres PositHIVas

Se uns tinham gripe, caxumba, catapora, sarampo, hepatite B, Bia Pacheco convivia com a aids. E começou a assumir a doença, sem culpa e sem fazer dela um propósito de vida. Organizou a ONG Mulheres PositHIVas para reunir pessoas parecidas com ela em uma só causa. Juntas, queriam levar conhecimento do vírus para outras mulheres e famílias que insistiam em não se considerar vulneráveis a um problema de saúde que pode estar em qualquer casa, basta não usar camisinha nas relações sexuais.

A linha tênue que vive Bia é para que a luta contra o preconceito não traga o efeito colateral da banalização da doença. No público mais jovem, já constatou o Ministério da Saúde, este problema ganhou destaque. Assim como os mais velhos, os mais novos têm resistência em encarar que podem ser contaminados pelo vírus e negligenciam o uso do preservativo. Entre 13 e 19 anos, os casos também estão em ascensão e nas palavras de Albertina Duarte Takeuti, coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente de São Paulo, as meninas e meninos têm muito mais medo de uma gravidez indesejada do que do vírus HIV. Nesta faixa-etária, as garotas superam os garotos em números de novos casos e, por isso, foram escolhidas pelo Programa Nacional de DST/Aids para serem alvo da campanha contra doença no carnaval.

Coquetel na menopausa

Bia Pacheco, independentemente da idade, não quer novos casos da doença aconteçam. Hoje, aos 63 anos, ela lembra que passou a tomar o coquetel antirretroviral na mesma época em que os efeitos da menopausa chegaram. Equalizar as seqüelas dos fortes medicamentos com as outras drogas já ingeridas normalmente pelos idosos com os remédios necessários para tratar a aids é um dos principais desafios dos infectologistas que atendem pacientes dessa faixa etária.

Mas em caso de contaminação, Bia teme que a informação seja encarada como uma sentença de morte. “Não é”, repete com freqüência. Em 2010, ela – mãe de três filhos, avó de quatro netos – completa 13 anos de convivência com o vírus. Muito mais do que os seis meses de vida que deram para ela na época do diagnóstico. “Muitos dos que temeram que eu não sobreviveria, eu enterrei. Um deles, infelizmente, foi o Carlos que tanto amei e tanto me ajudou na luta contra a aids”.

Beatriz Pacheco esbanja vida, saúde e disponibilidade para viver mais anos. Apesar dos outros netos que vieram depois da primeira, bem na época do diagnóstico da doença, ela não reservou espaço para fazer tricô na cadeira de balanço. Gosta de ser uma avó moderna. E é. Ela nunca aceitou bem os estereótipos mesmo.

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