quinta-feira, 25 de novembro de 2004

DIALOGANDO

William,



Você se expressou muito bem em suas colocações, em tudo. Ao passo que venho garantindo, que também, penso como você estas questões. Entretanto, à prática cotidiana é mais complicada do que se apresenta, bem mais! Os fatores históricos e sociais, e, até mesmo, psicológicos são envolvidos em um teatro, representativo, de um show de horrores. E é por isso, que temos a necessidade de uma linha condutora que seja nossa. É por isso, que a teologia gay necessita, urgentemente, de um paradigma construído a partir de sua realidade, não contrário ao seu sitz im leben, mas que venha santificá-lo como nossa expressão.


Nesse diálogo, que faço com você, com muito gosto e respeito, gostaria de entrar um pouquinho na realidade Evangélica do Brasil. Veja, você advoga sobre o espírito livre, a busca da aceitação comum: a multiculturalidade convivendo no espaço criativo comum, o respeito entre o humano, do sujeito em si nas humanidades. E concordo com isso, mas a experiência que tenho no meio gay e cristão, não me permite o desvencilhar de uma postura de grupo, ou de cultura, ou ainda (e essa é a que explica, ou se enquadra melhor) de movimento organizado em prol de seus direitos e deveres sociais e humanitários. Para isso temos que ter um paradigma, não para sermos etnocêntricos, não para converter o mundo à cultura gay, não para difundirmos uma nova ideologia dominante, não! Simplesmente, para nos orientar e, assim, não nos perdermos em nossa própria luta, em nossa própria causa. O meio Evangélico importa no Brasil uma teologia européia dos séculos XVI- XVIII, e Norte- Americana a partir do séc XIX, que fazem um verdadeiro massacre psíquico ao sujeito constituído, principalmente, se esse sujeito constituído for homossexual.


O arquétipo moral foi basilar na construção religiosa do ideal burguês nesses séculos. O Iluminismo do século XVIII conferia um ideal ordenado de um mundo racional, caminhando para perfeição, ainda que renegassem o status quo religioso (Igreja Medieval), e formas de governos absolutistas, conferiam a idéia da civilização; e ser civilizado era aderir a uma série de normas moralizantes, mesmo que não necessariamente religiosas, mas constituídos em valores de bons costumes, que renegavam tudo aquilo que se assemelhava com o caos, desordem, anarquia, ou que, não aferissem proximidade com esse mundo civilizado. Afinal, os iluministas eram burgueses! Logo, já na modernidade surgem 2 grupos religiosos, mas não distintos com facilidade: Pietistas (Alemanha) e puritanos (Inglaterra). Que traziam essa moral em seu discurso religioso, e que portanto, traziam muitos burgueses pensadores para o seio do protestantismo com seus padrões de condutas elevados. Junto do Iluminismo, tem-se na Inglaterra a Revolução Industrial, que em meio a uma série de idéias, aparentemente, anticlerigais, na Revolução Industrial, coloca em evidência duas classes religiosas, que vão colonizar os EUA: os puritanos (presbiterianos) e os pietistas ingleses (metodistas).
Interessante, que em pleno Iluminismo, a religião puritana, constituída pela burguesia inglesa converte a Inglaterra, e os ideais burgueses são colocados dentro da religião de forma radical e definitiva, o discurso moralizante se apresenta como fator fundamental nessa história. A religião vinga, chega até nós, e o ideal das luzes não dura mais do que o século XVIII, quando no século XIX, a racionalidade começa ser criticada pelo romantismo e subjetivismo.


E nós, aonde nos encaixamos? É simples, dentro do discurso moralizante, puritano, herdado do colonialismo, ops! Das missões das igrejas evangélicas norte-americanas. Essa ideologia, que vem de séculos atrás, está infiltrada como o PRINCIPAL discurso de evangelização no Brasil. E isso, no meio gay evangélico tem gerado segregação. Os fatores são diversos: a maioria dos homossexuais evangélicos pertence à classe média; são na maioria das ocorrências não assumidos, pertencem ao meio social de comportamento de gênero, dependentes dos familiares, possuem idéias etnocêntricos, etc. Fato esse, perceptível em nossas listas de discussões; onde um rapaz faz um anuncio de relacionamento (procura-se namorado) e, imediatamente, é persuadido ao constrangimento, por um outro gay evangélico, que considera tal atitude simples, corriqueira, natural como: mundana, anti-religiosa, pervertida, fora de propósito etc... Os valores seguidos na teologia gay, são valores reacionários, que renegam os nosso modo de vida a todo o instante, mas que estão como paradigma na sua construção.


Então, quando falo em axioma para nosso caminhar religioso, venho falando não para atribuição de mais rótulos, ou para formação de uma nova casta religiosa, não. O problema é que se alguns forem caminhar dentro do que sentem, eles irão caminhar dentro de uma ideologia que vai continuar a massacrá-los, pois na verdade é isso que acontece; todos nós seguimos os nossos valores, e qual é o valor gospel gay? Infelizmente, o mesmo valor dos religiosos colonizados, ops! Evangelizados pelas igrejas de missões. Não temos um paradigma, a crítica feita a muitos evangélicos homossexuais, por outros também homossexuais é idêntica ao discurso das igrejas homofóbicas: a parada gay é carnaval (portanto pecado), se anunciar disponível em uma lista de discussão é ter comportamento mundano, transar com mais de uma pessoa sem compromisso é promiscuidade! Mas e os nossos valores? O que dizer então das travestis? Dos garotos de programa? Das idas às boates? Dos go go boys? Enfim, eu não acho nada disso pecado, e muitos que dizem ser pecado, estão pecando, pois estão enfiados até o pescoço nesses tipos de programas. Entretanto, continuam minando a possibilidade de uma reflexão nossa, que venha nos unir em torno de um mesmo ideal: a construção de um mundo onde não somos julgados pelo fato de estarmos levando à cama parceiros do mesmo sexo. Mas julgados pelo nosso caráter e responsabilidade pelo bem comum.


Nesse sentido, sua mensagem foi muito elucidativa, pois nos abriu o espaço para comentarmos sobre a ideologia - ninguém vive sem uma. Entretanto, podemos criar uma sem iniqüidade, não há problemas com os ideais, desde que esses enxerguem o bem comum, a multiculturalidade e os valores humanitários. Contudo, o que não existe em nossa teologia são tais princípios, afinal, ela está permeada, invadida pela hipocrisia moralista, puritana, burguesa dos ingleses, dos norte-americanos; esses mesmos que votaram em Bush, dando um credenciamento, ao mesmo, em sua política antigay, antiaborto, antiprostitutas etc. Portanto, esse espaço que você deseja, e que brilhantemente você expõe como desabafo em seu texto, tem que ser criado, tem que ser experimentado em nosso espaço e valorizado nele, como algo legítimo, santo e que nos represente.
Pois tudo isso não vai cair do céu como presente de Deus, a hipocrisia social diz que nós somos gueto, subcultura, marginalizados, vagabundos, promíscuos, sem- caráter. Ainda, alguns alimentam por nós o ódio injustificado, trazido dos manuais de castidade e vida santa da perfeita sociedade burguesa dos séculos XVII- XIX.


Para concluir, um leitor, nos comments, indagou se tudo isso não corre o risco de ser mais um dogma. Penso que não; o dogma tem a ver com a religião, e religião nós temos. Acredito mais na possibilidade de desmistificação do mal, e de sentimentos de auto- estima, também, sentimentos de identidade, civismo e democracia. O respeito pelo humano tem que ser considerado em nossa teologia, uma pessoa não é melhor ou pior do que ninguém, pelo fato de ser gay, ou de ter vários parceiros. Mas uma pessoa é pior do que as outras, quando se forja na hipocrisia uma identidade que ela não possui, atribuindo grilhões aos outros, enquanto ela mesma se faz presa em suas próprias crises.


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